domingo, 22 de novembro de 2009

Substitutos

por Daniel Pinheiro

Está em cartaz nos cinemas o filme “Substitutos” (em inglês “Surrogates”). É um filme de ficção científica – bem, nem tanto assim, como veremos. Em um enredo que lembra “Matrix”, os seres humanos de um futuro (ao que parece não muito distante) poderão escolher um “Substituto” robô para si. Basta escolher um corpo perfeito e a face que mais lhe agrada, entrar em uma máquina que capta a sua atividade cerebral, e pronto: o robô (você) está pronto para sair no meio do mundo real e viver – ou possibilitar que você viva – tudo que quiser. E o melhor: sem riscos.

Saltos de pára-queda, viagens aos lugares mais longínquos e inóspitos do planeta, e relações amorosas picantes, tudo vivido na prática pelo seu “robô” substituto, e vivenciado (sentido) por você, feliz e tranqüilo, em segurança deitado em algum laboratório.

O filme pode ser apenas mais uma tentativa de Hollywood de faturar com ação, uma história intrigante e muito suspense, mas o enredo dá o que pensar. Não estamos muito longe dessa realidade. Não me refiro a robôs, mas ao “uso” que fazemos de nosso próprio corpo.

O filósofo Descartes é o pai da célebre frase “Penso, logo existo”, que se tornou o princípio de um dualismo que perdura até hoje no pensamento moderno. Dualismo significa a separação entre corpo e alma. Na verdade, para ele, se eu só existo porque “penso”, então eu sou apenas o que penso. Não sou meu corpo. Eu tenho um corpo, mas não “sou” esse corpo. O corpo é mero instrumento para “eu” pensar e viver.

Hoje em dia é assim que nós pensamos. Ainda não chegamos ao ponto de pular de pára-quedas sem medo de morrer, porque ainda guardamos um nexo causal entre corpo e existência. Sabemos que, se nosso corpo morrer, nós morreremos. Nosso corpo não é como os robôs do filme, que podem morrer, porque, afinal de contas, são apenas robôs. Apesar disso, no campo da sexualidade conseguimos a proeza de levar o pensamento dualista cartesiano às últimas consequências nesse campo, principalmente depois do advento e da disponibilização da contracepção em larga escala.

Atualmente qualquer pessoa pode usar meios contraceptivos (preservativos, pipulas anti-concepcionais etc.) e sair por aí tendo relações sexuais. Muitos acreditam na idéia (errônea) que até mesmo o risco de contágio de DST’s é mínimo caso a pessoa seja prevenida. A pessoa que faz isso sabe que tem um corpo, mas parece não perceber que esse mesmo corpo é parte integral de quem ela é, e não um objeto para ser manipulado. Ela usa o seu corpo e o corpo da outra pessoa para obter prazer, esse objetivo máximo – summum bonum – do mundo moderno intolerante ao menor sinal de sofrimento ou de renúncia.

João Paulo II, na Teologia do Corpo, desmascara essa atitude dualista e utilitarista para com o próprio corpo – obviamente inconseqüente, mas alarmantemente ignorada pela maioria. É como um sacerdote já dizia: o preservativo pode até evitar as consequências físicas (DST’s) durante um certo número de relações sexuais, mas é incapaz de evitar as consequências emocionais. Quem descobre isso hoje em dia fica pasmo. “Puxa vida, nunca tinha pensado nisso”. Deveríamos ficar abismados, na verdade, ao pensar que reconhecer isso cause espanto na maioria das pessoas.

Assim como as pessoas no filme utilizam os “robôs substitutos” para vivenciar suas sensações tão almejadas, hoje “usamos” nosso corpo e o corpo dos outros para os mesmos fins, ignorando que nós somos esse mesmo corpo. Somente reconhecendo na relação sexual o que ela é – uma entrega sem reservas de todo nosso ser para a outra pessoa – é que vamos descobrir que a única maneira de vivê-la realmente é através de um compromisso matrimonial e da vivência do ato conjugal na castidade. Porque o amor só pode ser verdadeiro assim. Qualquer outro “setting” é simplesmente uma mentira falada com a linguagem do corpo, ou seja, nosso corpo "diz" com seus gestos algo que não corresponde com a realidade do que pensamos. O corpo na relação sexual sempre diz "entrego-me totalmente a ti", enquanto o pensamento em alguns casos pode dizer "não me entrego totalmente, mas entrego-me a ti só para obter prazer nesse momento, nada mais te prometo".

Que Deus nos ajude a reconhecer que o corpo é “sacramento” (em um sentido mais amplo de sinal da presença de Deus). E como “sacramento”, o corpo (que faz parte da própria pessoa, unidade com a alma) é imagem do Deus vivo. E nosso ser inteiro (corpo e alma) só encontra sentido quando ama (por inteiro, corpo e pensamento), porque Deus é amor.

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