quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Explicando o que o Papa quis dizer sobre camisinha

Traduzo abaixo artigo do Pe. Joseph Fessio, S.J., disponível em: http://blogs.reuters.com/faithworld/2010/11/23/guestview-did-the-pope-%E2%80%9Cjustify%E2%80%9D-condom-use-in-some-circumstances/


O referido Padre é fundador e editor da Ignatius Press, editora americana do livro "Luz do Mundo", que está causando essa polêmica. A leitura do artigo abaixo é bastante esclarecedora, por isso peço sua atenção.


Obs.: Nos trechos da entrevista do Papa, preferi seguir a minha tradução a partir do inglês, ao invés de copiar a tradução que vem sendo divulgada (feita a partir do italiano, provavelmente), a fim de evidenciar exatamente os problemas dessa mesma tradução.

* * *

O Papa "justifica" o uso de preservativos em algumas circustâncias? A resposta é "não". E também não há, absolutamente, nenhuma mudança na doutrina da Igreja. Não apenas porque uma entrevista do Papa não constitui doutrina da Igreja, mas porque nada do que ele disse difere da perene doutrina da Igreja.

Então porque todas as manchetes dizendo que ele "aprova", ou "permite", ou "justifica" o uso de camisinhas em certos casos?

Essa é uma boa questão. Tão boa que o próprio entrevistador perguntou praticamente a mesma coisa durante a entrevista.

O Papa fez uma afirmação na entrevista, e tal afirmação agora vem sendo largamente citada na imprensa mundial. Imediatamente, o entrevistador, Peter Seewald, colocou essa questão: "Você está dizendo, então, que a Igreja Católica em princípio não está, de fato, se opondo ao uso de camisinhas?

O Papa esclareceu e expandiu seu raciocínio da afirmação anterior.

Então vejamos as duas declarações.

Depois de dizer que: "não podemos resolver o problema [da Aids] com a distribuição de preservativos..." e que: "a fixação exclusiva no preservativo implica uma banalização da sexualidade..." o Papa diz: "Pode haver um fundamento (*) no caso de alguns indivíduos, como talvez quando um "prostituto" [homem] usa um preservativo, onde isso pode ser um primeiro passo na direção de uma moralização, uma primeira assunção [assumir] de responsabilidade, no caminho da recuperação de uma consciência de que nem tudo é permitido e que não se pode fazer o que se quer. Mas não é realmente [de fato] o caminho para lidar com o mal da infecção por HIV. O caminho só pode realmente [de fato] residir tão somente na humanização da sexualidade"
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(* Nota: Na tradução que vem sendo divulgada, lê-se nesse trecho: "Pode haver casos pontuais, justificados, como por exemplo a utilização do preservativo por um prostituto,...")
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Essa é uma declaração altamente qualificada, e muito condicional. Não obstante, ela causou a pergunta de Seewald, acima mencionada. Mas vamos primeiramente olhar com mais atenção para essa declaração. O termo original em alemão para: "Pode haver um fundamento no caso de alguns indivíduos..." é: "Es mag begründete Einzelfälle geben…" A tradução para o inglês, aqui, é fiel e acurada. "Begründete" vem de "Grund" = "ground" (terra, solo, base, terreno), e significa tanto o solo onde nos pomos de pé, quanto um fundamento lógico. Há alguma ambiguidade porque esse termo poderia ter um sentido fraco de "alguma base para", ou um sentido forte de "um fundamento lógico e ético para". É por isso, talvez, que Seewald fez a pergunta seguite, então nos voltaremos para ela daqui a um momento.

É importante notar que há dois erros sérios de tradução na versão italiana das opiniões do Papa, versão a partir da qual muitas reportagens prévias foram baseadas, já que o embargo foi quebrado pelo jornal vaticano L'Osservatores Romano (Essa é outra questão). Em primeiro lugar, o termo alemão "ein Prostituierter", que só pode ser um "prostituto" homem. A palavra normal do alemão para prostituta é "[eine] Prostituierte", que é feminina, e se refere somente a uma mulher. A tradução italiana "uma prostituta" simplesmente inverteu o que o Papa disse.

Igualmente problemático, "giustificati" = justificado, foi usado na tradução italiana de "begründete", arbitrariamente resolvendo a ambiguidade unilateralmente.

O Papa responde: "Ela [a Igreja] não a considera [a camisinha] como uma solução real ou moral, mas, nesse ou naquele caso, pode haver, não obstante, na intenção de reduzir o risco de infecção, um primeiro passo em um movimento direcionado a um caminho diferente, um caminho mais humano de viver a sexualidade".

Em primeiro lugar, uma solução que não é "moral" não pode ser "justificada". Isso é uma contradição, e significaria que algo em si mesmo [intrinsecamente] mau poderia ser "justificado" para se atingir uma finalidade boa. Note: o conceito de "mau menor" é inaplicável aqui. Pode-se tolerar um mau menor; não se pode fazer algo que seja um mal menor.

Mas a distinção crucial aqui é entre a "intenção" do "prostituto" [homem] (qual seja: evitar infectar seu cliente), e o ato em si (qual seja: usar uma camisinha). Já que na quase totalidade das reportagens que eu li essa distinção não foi apresentada, ela pede uma alguma elaboração.

Essa distinção, na filosofia moral, ocorre entre o objeto de um ato e a intenção de um ato. Se um homem rouba a fim de fornicar, a intenção é fornicar, mas o objeto é o ato de roubar. Não há uma conexão obrigatória entre roubar e fornicar.

No caso das opiniões do Papa, a intenção é prevenir a infecção, e o objeto é o uso da camisinha.

Aqui está um exemplo dessa distinção, análogo ao que o Papa disse. Ladrões estão usando canos de ferro para atacar pessoas, e os ferimentos são graves. Alguns ladrões usam canos acolchoados para reduzir os ferimentos, enquanto ao mesmo tempo ainda conseguem debilitar as vítimas o suficiente para o assalto. O Papa diz que a intenção de reduzir os ferimentos (no ato de roubar) pode ser um primeiro passo na direção de uma maior responsabilidade moral. Isso não justifica as seguintes manchetes: "Papa aprova canos acolchoados para o assalto"; "Papa diz que o uso de canos acolchoados é justificado em algumas circunstâncias"; "Papa permite o uso de canos acolchoados em alguns casos".

É claro, poder-se-ia usar moralmente canos acolchoados em algumas circunstâncias, por exemplo como canos revestidos para que a água quente que corre neles não esfrie tão rápido. E poder-se-ia usar camisinhas moralmente em alguns casos, por exemplo, como balões de água. Mas isso também não justifica a manchete "Papa aprova o uso de camisinha", embora no caso dos balões d'água isso pudesse ser verdade. Mas seria uma tentativa intencional de enganar.

Em resumo, o Papa não "justificou" o uso de camisinhas em nenhuma circunstância. E a doutrina da Igreja permanece a mesma que sempre foi - tanto antes quanto depois das declarações do Papa.

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